sábado, 1 de fevereiro de 2014

ALGUMAS LUZES DENTRO DAS TREVAS

A PSICOLOGIA MEDIEVAL



                Tenho um fascínio meio sazonal, às vezes até bissexto, pela Idade Média. Lendo o livro O OUTONO DA IDADE MÉDIA, de Johan Huizinga, descobri me perguntando como era a psicologia medieval. Sim não estranhe em falarmos de psicologia antes da Psicologia (a letra maiúscula fronteiriça a psicologia como ciência moderna de suas anteriores). Como ciência a Psicologia se define como estudo do comportamento humano, porém ancestralmente a psicologia se definia como estudo da alma humana, e neste sentido ela se confundia com filosofia e religião. A própria origem do termo psicologia é milenar e nos remete à Grécia Antiga. Sócrates, por exemplo, já dizia que era o ser humano a verdadeira matéria digna de estudo. Mas, deixemos os gregos de lado e pulemos para a Idade Média.
                A chamada Idade Média é um longo período histórico europeu que vigorou entre os séculos V e XV. A expressão Média é uma convenção clássica ao se dividir a História como Antiguidade, Média e Moderna. A própria Idade Média, por sua vez, subdividida em Baixa idade Média e Baixa Idade Média. O livro a que faço menção descreve os estertores daquele período histórico.

                A psicologia medieval, como não poderia deixar de ser, era extremamente vinculada a conceitos religiosos. O Cristianismo predominava, aliás, imperava. O Cristianismo era mais do que uma religião, era toda uma síntese sócio cultural de uma época. O poder da Igreja Católica era hegemônico e monopolizador. Natural que o estudo do psiquismo de então fosse um estudo de caráter religioso sobre a alma humana.
                A psicologia medieval partia da concepção aristotélica de que era um campo de estudo do “ser vivente animado”. Leia-se animado como aquele que tem anima (alma). Era, portanto, o estudo do vivente animado indissociavelmente em comunicação com a Teologia. Em outras palavras, a parte mais nobre do ser humano (principalissimum hominis) era a presença do elemento divino.
                E assim, hoje motivado pelo passado que contribuiu para formar o presente em que vivo, arregacei as mangar e fui à luta, isto é, debrucei-me em meus livros e pesquisei junto aos textos que tenho acesso. Para quê? Simples. É como está escrito no prefácio da primeira edição do livro O OUTONO DA IDADE MÉDIA, em 1919: “a origem do novo é o que geralmente nosso espírito procura no passado. Deseja-se saber como os novos pensamentos e as novas formas de vida, que mais tarde brilharão em toda a sua plenitude, foram despertados”. Captar o conteúdo essencial do que penso e faço, eis a motivação.
                Pensar a Idade Média em termos de ideias é inevitável pensarmos em Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Mas existiram, é claro, outros tão importantes como Boaventura de Bagnoregio (São Boaventura), Alain de Libera e Bernardo de Claraval, entre outros. Este último, por exemplo, também conhecido como São Bernardo de Clavaral, elaborou uma psicologia da vontade. Em sua visão teológica entendia ele que o ser humano fora criado para participar da felicidade de Deus. Para atingir ao bem desejado deve o homem assentir ou se afirmar. E nisto, postula São Bernardo, o homem é dotado de liberdade: liberdade para decidir sobre sua perdição ou sua salvação. O que capacita o humano a participar de Deus é, pois, a vontade livre. O homem feito à imagem e semelhança de Deus era refletida no livre-arbítrio.

                Para Santo Agostinho, que assim como Platão entendia o homem cindido entre alma e corpo, a alma não era a sede da razão, mas uma manifestação de deus no interior do homem. Como pensador do seu tempo, Santo Agostinho foi um agudo observador do ser humano e fez valiosas considerações sobre os estágios psicológicos do homem. Para ele a criança comunicava sua própria força interna e não necessariamente a vontade ensinada dos pais. Conhecer (introspecção) a si mesmo era seu grande mote e objetivo, afinal, dizia ele, somente a alma poderia conhecer a própria alma. Em sua autobiografia AS CONFISSÕES escreveu que a alma pode facilmente mandar no corpo, sendo sua grande dificuldade mandar e obedecer a si mesma. O conhecimento da vida interior é um conhecimento temporal. O que é eterno vem de Deus.

                A reflexão de Santo Agostinho sobre o tempo ainda hoje é recorrente. Na divisão do tempo em passado, presente e futuro, diz Agostinho o homem só te capacidade de perceber o tempo no momento que ele ocorre. Não se pode apreender o tempo, pois ele escorre e nos escapa sempre. O passado se afasta initerruptamente, é por excelência o tempo da memória. O presente é o instante da percepção, enquanto que o futuro é o tempo da expectativa, o tempo que ainda não chegou.

    Para São Agostinho a alma humana é o habitat das capacidades de compreensão, percepção, memória, sonho, raciocínio e sentimentos. É a sede de todas as potencialidades do espírito humano. E em sua temporalidade térrea e corpórea a alma é um alongamento limitado entre o nascer e o morrer. A imutabilidade da alma e do tempo acha-se na eternidade de Deus. E escreve ele: “É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras”.

                O tempo assim entendido é da essência da mente. O passado que não existe mais só é presente por meio da lembrança e o futuro por meio da esperança. E é aqui que reside o EU humano, ou seja, pela interiorização do tempo na memória. Não haveria, pois, nem EU nem tempo para o humano acaso inexistisse a memória. Por isto não fica difícil hoje compreendermos a importância das ideias agostinianas para a ideia moderna de subjetividade, pois vem dele o conceito de espaço interior.

                Em SUMA TEOLÓGICA, São Tomás de Aquino defende que o homem é feito da mesma matéria que é feita todas as demais criaturas, assim como em OS PRINCÍPIOS DA NATUREZA afirma que o homem tem sua natureza animal. Ao contrário de Agostinho, Aquino compreendia, de um ponto de vista aristotélico, a interdependência entre corpo e mente. O homem tem, segundo este teólogo, tem o livre-arbítrio para escolher seu comportamento. Em busca da perfeição vive homem a sua existência. Este é a essência humana: a busca pela perfeição, somente encontrada em Deus que é capaz de unir essência e existência.
                O papel da razão é enfatizado em São Tomás de Aquino que acreditava que é ela que nos ajudar a interpretar se determinado ato é certo ou errado. Afinal, Aquino também compreendia que o conhecimento humano através da concordância da forma do objeto com a forma da mente. Entra-se aí na ideia da intencionalidade (intentio), isto é, dirigir a mente para. Em outras palavras, a mente se conhece não por sua essência, mas sim por seus atos.
                Estão aí implantadas, desde a Antiguidade passando pelo cristianismo medieval, em sucintas palavras, algumas fundamentais bases para se ter acesso a interioridade da alma, ou mais modernamente falando: a realidade psíquica.

Joaquim Cesário de Mello

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

A INVENÇÃO DA SOLIDÃO


   

Quase ao acaso (não há, segundo Freud, acaso no inconsciente) deparei-me em minha biblioteca pessoal com um já lido antigo livro de Paul Auster, “O Inventor da Solidão” (ed. Best-Seller/1997).
      Paul Auster é um escritor americano vivo e também roteirista de cinema bissexto. Autor de vários livros, alguns deles, inclusive, sucessos editoriais, tais como "Trilogia de Nova York".
      “O Inventor da Solidão” não é um livro dos mais famosos do escritor. Livro pequeno, não o transforma por isso em uma obra menor. Trata-se de um livro que recorda suas lembranças, ao mesmo tempo em que mescla seus vastos conhecimentos sobre literatura, psicanálise e filosofia. O cerne do texto é a questão da paternidade.
      Após a morte do pai o autor, iniciando seu longo e elaborativo processo de luto, vai mosaicamente reconstruindo a imagem daquele que contribuiu para lhe dar a vida e que a vida agora o tira dele. A partir deste pai morto, não mais existente, Auster vai se dando conta do um pai desconhecido até então. Através dos objetos que um dia pertenceram a ele temos o começo do desnudar de um pai. Não é à toa, portanto, que o primeiro capítulo tome o sugestivo título “Retrato de um homem invisível”.
 Pode alguém conviver tanto tempo com outro e dele quase nada conhecer? Parece que Paul Auster nos responde positivamente a tal indagação. E não estamos aqui a falar dos segredos íntimos de uma pessoa, mas sim de sua própria solidão, como assim o faz Auster quando descreve o célebre quadro de Van Gogh “O Quarto”: “Observe ali. Observe com cuidado. A cama bloqueia uma porta, a cadeira bloqueia a outra porta, a janela está fechada: não se pode entrar e uma vez lá dentro, não se pode sair... O homem nessa pintura ficou o tempo demais sozinho, debateu-se demais no abismo da solidão. O mundo termina na porta bloqueada. Pois o quarto não é a representação da solidão, é a própria solidão”. Arguta sensibilidade de um observador-escritor profundo.
      Qual o lugar da perda de um pai na vida de um filho? Inicialmente, provavelmente, será a sensação de um vazio; depois, estranhamente, haverá  de vir dúvidas: “será que o amei mesmo?’ ‘a quem amei?’  ‘ele me amou?” “a quem ele me amou?”. Talvez mais do que a inquietação da ausência física haja a inquietação da ausência das respostas.
       Os objetos e as fotografias do morto são agora o terreno aonde se possibilita a construção de um novo encontro. Os óculos com que antes ele via a vida repousam inertes olhando o filho, assim como um fio de cabelo na escova é o resto de uma seiva outrora nutrida de anseios e frustrações.
      Quem era esse pai que se escondia por detrás de suas inúmeras máscaras de convencionalismo e obrigações, e que sempre lhe escapou fugidio pelos meandros miúdos do cotidiano? A imagem edificada pelos anos de evitação era assim como que um retrato incompleto de uma pessoa, lembranças de um não-encontro: um pai lacunar.
      O pai de Auster ficara órfão ainda na infância e este vazio que carregara trouxera-lhe um retorno no conhecer do filho. Um pai e um filho. Duas ausências. Dois estranhos. Um órfão de fato e o outro psíquico. Um pai cujo amor de seu pai lhe foi tirado aos sete anos e que assim só soube amar de maneira interrompida. Um filho cujo destino foi ser amado por um pai que só sabia amar um amor infantil. O filho cresceu. O pai não.
      Uma mesma raiz e duas solidões. Dois continentes separados por um imenso oceano. Uma única distância vivida na proximidade dos corpos. Ambos quartos escuros, fechados, trancados, que não se sabem apagados. A perplexidade que Auster nos dá no refazer de seu pai através de cacos e retalhos é mais que uma leitura poética, é uma comovente história de uma história invisível e que somente após a perda se recupera com a força de uma história feita a dois.
      Em seu mergulho na memória a partir da morte do pai Auster abre seu baú de lembranças com a singela obviedade da existência: "Num dia há vida... E então, subitamente, acontece a morte'.  No cascavilhar do escombros deixados pelo pai o autor/personagem expõe uma dais mais belas paginas da literatura contemporânea. O trecho abaixo que o diga por si mesmo:

"Não há nada mais terrível, aprendi então, do que ter de encarar os objetos de um morto. As coisas são inertes: Têm significado apenas em função da vida que as utiliza. Quando essa vida acaba, as coisas se transformam, mesmo que permaneçam as mesmas. Estão lá e no entanto não estão: fantasmas tangíveis, condenados a sobreviver num mundo a que não mais pertencem. O que se pode pensar, por exemplo, de um armário cheio de roupas esperando silenciosamente para ser usadas por um homem que não voltará a abrir a porta? Ou os pacotes de camisinhas espalhadas pelas gavetas repletas de cuecas e meias? Ou um barbeador elétrico aguardando no banheiro, ainda cheio de pêlos cortados da última barba? Ou uma dúzia de tubos vazios de tintura para cebelo, escondidos num sacola de viagem? - revelando subitamente coisas que não temos vontade de ver, nem desejo de saber. Há nisso certo sentimentalismo e também uma espécie de horror. Por si só, os objetos nada significaam, como os utensílio culinários de uma civilização desaparecida. E no entanto dizem-nos alguma coisa, parados ali não como objetos mas como resquícios de pensamentos, de consciência, emblemas da solidão na qual um homem passa a tomar decisões sobre si mesmo, se irá pintar o cabelo, se irá vestir esta ou aquela camisa, se irá viver, se irá morrer. E a futilidade de tudo isso quando vem a morte."              
       O psiquismo de um morto que em vida era como o enigma de uma esfinge a desafiar o filho constantemente "Decifra-me ou te devoro". A mente de um falecido na continuidade do filho - herdeiro e guardião de um baú de memórias e ausências - revela-se nua e inteira. Auster nos oferece essa viagem aos recônditos de um pai, quase como um intruso ou um ladrão, como ele mesmo confessa, a saquear os locais secretos da alma de um homem.
      Quisera que os pais soubessem disso antes que o saber não lhes tivesse mais nenhuma valia. Conhecer-se por quem não é, é perder-se - diz o poeta. Haveria assim a chance em vida do compartilhamento e do encontro; do pai que se faz conhecer e conhece o filho, e um filho que conhecido se conhece mais. Não se chegaria, portanto, ao ponto desses tristes versos de Fernando Pessoa, que abaixo transcrevo, e que não quero para ninguém, menos ainda para aquele que vejo quando me quando me vejo no espelho:


"Quando quis tirar a máscara,
 Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo".


Joaquim Cesário de Mello